Emocionalmente retalhada: como Mãe! e Fonte da Vida quase acabaram comigo



Eu gosto de filmes. Apesar de odiar cinéfilos, eu gosto de filmes. E eu raramente tenho atenção concentrada o suficiente para assistir o filme em uma sentada só (risos), então sempre prefiro assistir filmes leves, como comédias românticas e blockbusters bobinhos, porque se eu perder algum detalhe, não vai significar muito. Porém, vez ou outra, minha consciência grita “ei, vai assistir um negócio profundo”. Ou pseudo-profundo. Em suma, eu preciso assistir algo que converse comigo, que me faça pensar.

Eis que, alguns meses atrás, eu resolvi assistir Mãe! (2017), um filme que foi muito comentado na época do seu lançamento, mas que agora parece ter sido completamente esquecido. Para algumas pessoas, esse filme é uma tortura, pois elas não entendem nada. Para outras, esse filme é uma tortura porque elas entendem absolutamente tudo.

Infelizmente, eu faço parte do segundo grupo. Confesso que demorei muito para entender o filme, e até mesmo tive que pesquisar para entender melhor alguns detalhes depois. Mas eu saquei quem era a Mãe logo de cara, e isso acabou comigo. A partir da metade do filme, foi só choro. E quando acabou, eu fiquei chorando por mais meia hora. O filme tem a fama de ser angustiante, então isso já era esperado. O problema foi as semanas seguintes.

Eu entrei em delírio de ruína. Para quem não sabe, delírio de ruína é um tipo de delírio no qual a pessoa acredita que o mundo está acabando, que tudo está perdido e não há nada que possa ser feito. Tudo vai se acabar e nada impedirá a catástrofe que irá dizimar toda a população mundial. Admito que, até agora, ainda penso um pouco assim, mas consigo entender que ainda existe alguma esperança — o pensamento, agora, se assemelha mais a um pensamento obsessivo, no qual eu penso com frequência que o mundo irá acabar se não fizermos nada, mas há um princípio de realidade: existe algo a ser feito.

Foram algumas semanas em que passei chorando na volta da faculdade, semanas nas quais minha motivação para fazer qualquer coisa estava completamente zerada, pois nada mais fazia sentido. Meu professor de ética, que é da psicologia humanista, estava falando sobre valores, e perguntou para os alunos o que eles valorizavam. Eis que ele olhou para mim e perguntou “o que você valoriza?”. Depois de alguns segundos do mais absoluto silêncio, ele perguntou “não existe nada que você valoriza?”. Só consegui responder “se eu tiver que responder a verdade, então essa é a resposta mais próxima”. Porque a única coisa que eu valorizava era algo que eu estava convencida de que estava morrendo.

Mãe! foi o gatilho de uma das minhas piores crises depressivas, mas eu não consigo deixar de amar o filme. Muitas pessoas com transtornos de ansiedade odiaram o filme e acharam desnecessário, pois também foi um gatilho para elas. Eu, que aparentemente sou apaixonada pelo meu próprio sofrimento, só consigo pensar em como esse filme mexeu comigo, e como eu amo quando isso acontece. Quando algo chega e me tira completamente dos eixos, me desnuda de todas as minhas convicções e só me sobra a sensação de que, independente do que eu faça, eu sou extremamente insignificante. Isso pode parecer não muito saudável, mas é justamente essa realização de que eu sou um ninguém que tira de mim um peso enorme, ao passo em que eu sou confrontada com o absurdo da realidade humana. Dói, mas faz bem.

Eu fiquei furiosa com Deus ou qualquer divindade possível, pois estava claro para mim que a criação da espécie humana foi o maior erro cometido e que a coisa mais bonita que existe nesse universo foi simplesmente abandonada. Se realmente teve alguém que nos criou, eu guardo muita mágoa, pois a única coisa real que tem algum aspecto divino e sagrado foi largada às traças, ou melhor, largada aos humanos — o que é muito pior. Deus, se você tá lendo isso agora, vê se dá um jeito de acabar com a gente logo, tá? Obrigada.



Pois bem. O tempo passou e eu melhorei (parcialmente). Até que, recentemente, eu estava fazendo um trabalho sobre religião na perspectiva de Jung, o pai da psicologia analítica, e lembrei de um filme que eu tinha assistido há muito tempo: Fonte da Vida (2006). Eu lembrava vagamente da história, recordando apenas que havia um aspecto religioso muito forte, então resolvi reassistir. O filme narra a história de uma mulher que está morrendo de câncer e encontra na mitologia do povo Maia os recursos para “fazer as pazes” com a morte. Vou ser sincera: o filme é bizarro e, em partes, confuso, mas ainda é mais fácil de entender e menos angustiante que Mãe!. Então por que esse filme quase acabou comigo também?

Ele me lembrou que as coisas mudam e tudo está fadado a um fim — uma morte —, e o máximo que posso fazer é utilizar recursos simbólicos para elaborar essa questão dentro de mim. E o pior: ele me lembrou do quanto eu ainda estou longe de conseguir aceitar, de deixar de ter medo, como a própria protagonista faz. E eu não estou falando da minha própria morte física, mas das diversas mortes que sofremos ao longo da vida. Ao morrermos como crianças, e depois como adolescentes, e depois como adultos, para enfim morrer como idosos. Ao morrermos como estudantes, ao morrermos como trabalhadores, ao morrermos como amantes. Ao morrermos como qualquer coisa que, em algum momento, auxiliou na sustentação da nossa identidade, individualidade ou psique. Este filme não só me lembrou dessas mortes, como também fez morrer algo em mim.

Morreu em mim a certeza de que existe algo a mais. Morreu também a ideia de que eu possuo algum tipo de controle sobre as coisas que acontecem comigo. Eu morri como a capitã do barco e renasci como a donzela se afogando, sem qualquer perspectiva de salvação.

Só que o filme não para por aí. Ele também traz uma nova perspectiva sobre a questão do fim: a morte como um ato de criação. Parece loucura, e é loucura pelos nosso padrões, mas no momento em que morri e renasci como uma pessoa completamente perdida e à deriva, foi-me dada a oportunidade de aprender a nadar. Eu nunca serei capaz de controlar o mar, mas certamente não ficarei de braços cruzados esperando que algo aconteça para me livrar do meu tormento.

Esses dois filmes foram um soco na minha alma. Eles não me mostraram nada que eu já não sabia antes, mas eles me fizeram sentir a realidade disso tudo, e a partir de então eu pude significar essas questões dentro de mim. O fato de que tem um nó na minha garganta e lágrimas em formação nos meus olhos neste exato momento prova que eu ainda estou aprendendo, que a ferida ainda é nova, e sangra, e dói. Dói, mas faz bem.

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